terça-feira, 21 de agosto de 2012

O caso do porta-malas

Sua cabeça latejava e lentamente ela foi abrindo os seus olhos. Após alguns segundos em que eles se acostumavam com a luz, apesar de pouca, ela se deu conta de que estava dentro de um porta-malas. Suas mãos e pernas estavam amarrados, havia uma venda em sua boca e cada osso de seu corpo doía como se pudessem se partir a qualquer momento. Após o sentimento de estranheza, um desespero tomou conta de sua alma, ela não fazia ideia de como tinha parado ali... queria gritar mas não podia, queria se mover mais estava presa, clautrofobicamente enclausurada em um porta-malas.

Ela podia ouvir a leve chuva que caía e ao longe o pavoroso grito de uma cigarra prestes a morrer. Sentia que passava por cima de uma estrada, provavelmente de chão, dado o cheiro de poeira e os estrondos repicados que as pedrinhas provocavam bem abaixo dela. 

Então, a pouca luz, que ainda passava pelas frestas da abertura de sua prisão, foi se apagando e ela começou a imaginar que horas seriam e se talvez alguém estaria procurando por ela. Talvez... talvez a senhora, síndica do prédio em que morava, afinal o aluguel do apartamento estava atrasado três meses, ou talvez a sua gata Marrie, que provavelmente estaria com fome, mas não, os gatos são independentes, ela pensou, Marrie deve estar procurando comida do lado de fora, apesar de não se lembrar se a janela ficara aberta ou fechada. Talvez alguém tivesse visto o que houve com ela, uma testemunha, e tivesse chamado a polícia, alguém de seu bairro que não tivesse medo dos traficantes ou dos assassinos que habitavam a região, alguém corajoso, como um príncipe encantado...

Porém, em meio a seus devaneios sem sentido, o carro parou abruptamente, ela sentiu a mudança do solo, andavam agora sobre o asfalto e o som de uma buzina, simplesmente ensurdecedor, fez com que ela se lembrasse da sua trágica situação. Pensou no trânsito, pensou que se talvez houvesse um acidente com o carro em que estava, que ela ficaria bem, talvez matasse o motorista, ou o ferisse, e quando a polícia chegasse ao local abririam o porta-malas e ela finalmente respiraria, mesmo que fosse por alguns instantes. Mas não, o carro continuou sua viagem, levando consigo os desesperos e esperanças de alguém, presa no porta-malas. 

Quando pequena, tinha o costume de questionar o porquê do nome das coisas, desafios etimológicos que a surpreendiam. Porta-malas era uma palavra muito simples, pois simplesmente nomeava um compartimento do carro que servia para guardar malas, mas não só malas, sacolas, instrumentos de trabalho, as compras do supermercado... e, atualmente, pessoas.

Havia um revólver carregado no banco do passageiro. As mãos do motorista estavam suadas, isso indicava seu nervosismo, não porque havia uma garota presa no porta-malas, mas porque se ele tivesse sofrido um acidente teria de pagar o prejuízo pelos concertos daquele carro, que não era dele. Mais prejuízos!!! Já não bastava os remédios que tinha que comprar pra sua filha aidética de cinco anos, como se não bastasse ter que trabalhar 14 horas por dia em uma fábrica de refrigerantes e ganhar quase nada de salário, como se não passasse as 10 horas que lhe restavam por dia praguejando contra a mãe da menina, que além de transmitir AIDS a própria filha durante a amamentação, ainda os abandonou.

Os médicos do hospital público disseram que o Brasil é um dos países mais avançados na disponibilização gratuita do coquetel, mas sempre que chegava aos postos de entrega, eles já tinham acabado. Às vezes conseguia um ou dois, mais não todos eles. É muito triste para um pai pobre, morador de periferia, que trabalha como um condenado, ter que ver sua própria filha morrer e não poder fazer nada. Mas dessa vez não, dessa vez com o dinheiro do sequestro eles iriam se mudar, ele iria abrir um comércio, mudar de nome e esquecer do passado. Preferiu nem olhar o rosto da garota no porta-malas, simplesmente o mandaram levá-la até o local combinado, simplesmente entrou no carro e dirigiu, a menina já estava lá, se a polícia o questionasse, diria que não sabia de nada, que era um trabalhador e não um bandido.

Apesar da hipocrisia, no fundo ele sabia que mesmo depois de pegar a sua parte, a menina não sobreviveria, mas como não seria ele o seu executor, como não participaria de seu calvário diretamente, preenchia a sua consciência com o pensamento de que a culpa não seria dele... quando adolescente ouvira alguém dizer que se alcançados os fins, os meios não importavam... ele considerava-se um meio.

A garota permanecia insolentemente pensativa. Nunca havia sido alguém que tomasse grandes decisões e quando as tomou se arrependeu. Nunca foi alguém forte, decidida, alguém que pudesse se salvar ou salvar alguém... ela tinha o costume de fugir. Tinha uma família abastada, de muitas posses, mas não suportava mais as cobranças de seus pais: seja mais simpática, estude mais, encontre um bom partido, faça faculdade de medicina, seja bonita, seja alguém.

Pelo costume de fugir das pressões que eventualmente surgissem, jamais teve muitos amigos, o mais próximo disso era algum vizinho que lhe emprestava uma xícara de açúcar, hábito de pedir que ela desenvolveu não porque faria efetivamente algum doce, mas simplesmente para ter algum tipo de contato com alguém. Na verdade, fez coleções de xícaras de todas as formas e tamanhos, e ao olhar para cada uma delas se lembrava das mãos gentis que entregavam o açúcar com gosto. Os invejava, os invejava tão fortemente que às vezes fingia ser um deles, sozinha em casa, se deparando com o olhar desconfiado de Marrie.

De repente, lembrou que uma vez assistiu a um desses seriados policiais, em que as vítimas de sequestro, quando dentro do porta-malas, conseguiam escapar chutando a maquinaria que envolvia os faróis traseiros. Pela primeira vez, tomou coragem e deu o primeiro chute, ainda muito leve e medroso. O segundo, já mais forte, começou a mover a peça, o terceiro a abriu e o quarto a arrancou com força da traseira do carro.

Enfim!!! Enfim o ar entrava e preenchia seus pulmões, muito fracos, quase sem vida ou esperança. Seus olhos arderam com a luz que os faróis coloridos que inundavam a via asfáltica provocavam.Ouviu algumas pessoas gritando, dizendo que havia um pé do lado de fora do porta-malas. Ao mesmo tempo o carro acelerou por alguns momentos, subitamente virou a direita, e parou no acostamento de uma estrada deserta, logo ao lado da rodovia, dessa vez, definitivamente.

O motorista desceu, desesperadamente checou se o revólver estava carregado, três vezes, suas mãos tremiam, seu coração explodia, seu cérebro fumegava por dentro, criando uma sensação insuportável. Pensou em fugir, pensou em gritar, pedir perdão, mas pensou em sua filha, pensou nos remédios e pensou na nova vida que ele havia sonhado pra si. Sabia que se fosse preso sua filha ficaria sozinha e morreria. Tomou coragem e dirigiu-se ao porta-malas. Viu o pé da moça pra fora, a primeira parte de seu corpo que ele viu, pensou que agora não haveria mais volta, não haveria mais escapatória, teria que matá-la.

A moça chorava e se lamentava por ter feito aquilo, sabia que se o motorista abrisse o porta-malas não haveria mais volta, não haveria escapatória, morreria, ali mesmo naquela beira de estrada.

O motorista abriu lentamente o porta-malas, já se sentindo um assassino, já se sentindo um pecador, condenado por Deus, que jamais conseguiria esquecer aquele horrível pecado. A moça já se preparava para o inevitável, de certa forma entendia que racionalmente matá-la seria o melhor a fazer, sabia que somente um milagre a salvaria. 

Quando o motorista olhou em seus olhos, já não parecia mais humano, apenas um assassino, sem nome, sem família, sem esperanças, a moça olhou de volta, sucumbindo àquele olhar gélido, imaginando aonde iria quando tudo aquilo acabasse.

Então, finalmente, um tiro. Um único tiro, seco e destruidor, apenas mais um som em meio ao caos do trânsito, que parecia ignorar os acontecimentos às margens de si, como uma máquina independente, feita de engrenagens frias e não pessoas. A moça fechou os olhos lentamente e já podia sentir o ardor do sangue pulsando lentamente pra fora de seu corpo, através de um buraco exatamente no meio de seu peito, e então, por incrível que pareça, se sentiu bem, sentiu a sua solidão, as suas mágoas indo embora junto com aquele fluido de vida. Lembrou de Marrie e percebeu que ela merecia alguém melhor que cuidasse dela, que fizesse mais carinho. Lembrou da síndica que provavelmente se aborreceria quando soubesse de sua morte, quanto dinheiro perdido! Percebeu que as xícaras não passavam de objetos inanimados, sentiu-se patética, porém, reconheceu em seu assassino, finalmente, um amigo. Um amigo que a livrou de sua infelicidade. 

Dizem que a cada vez que uma pessoa mata outra, é um pedaço de sua alma que vai junto com ela. Dizem que ninguém esquece o rosto daqueles infelizes que tiveram o seu bem mais precioso arrancado violentamente de si. Dizem que um assassino jamais se perdoa por continuar vivendo. Fim.