quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Café preto

A água na panela borbulhava raivosa. Ao longe as maritacas brigavam escandalosamente em torno de seus ninhos inacabados.  Suas mãos, já meio maltratadas pelo tempo, torciam as últimas roupas da bacia, seus ombros e costas doíam, mas ela deixara de se importar anos atrás. O cheiro do sabão lhe enjoava o estômago, porém, era necessário, tudo deveria estar impecável até a hora dele chegar...
Colocou o açúcar, o pó e enfim estava pronto mais um de tantos cafés, feitos exatamente às quatro da tarde, pontualmente, recorrentemente. O cheiro sempre despertava curiosidade, dizem que era sentido a quilômetros dali... Sua vizinha, ao voltar da novena, todas as terças-feiras, sempre comentava gentilmente “Nossa vizinha, que cheiro bom é esse?”, apesar de já saber, todas as vezes, que se tratava do café preto, amargo como a rotina que vivia.
Nesse dia, em específico, a vizinha praticamente convidou-se a entrar, não pelo café, é claro, o comentário dessa vez, ao contrário das outras vezes, só passava de um desculpa. O assunto que tinha ali era outro.
A vizinha começou uma conversa, nessa casa muito limpa, em meio ao cheiro do café, em uma determinada rua, como se começam todas as conversas em qualquer outra casa, de qualquer outra rua, mesmo que o café não fosse tão cheiroso como aquele. Disse que os dias andavam muito curtos, que já não havia mais tempo para os afazeres domésticos, que os tempos eram outros e que enfim, as mulheres não precisavam mais de seus maridos para viverem confortavelmente. Deveriam sim ir trabalhar, enfrentar o mundo lá fora e conquistar o que alguns chamam de independência.
Ela falava e repetia, como um rádio com defeito. Não se abalou com o olhar incomodado da anfitriã ao ouvir essas palavras, que a fizeram se lembrar de uma outra palavra que o padre usava com veemência aos domingos no ponto mais alto de seu sermão: blasfêmia. Como poderia uma mulher não receber seu marido em casa com menos do que roupas lavadas e passadas, um bom jantar e um cheiroso café?
Então, a vizinha avançou um pouco mais na conversa, que evoluiu de uma quase tese científica, dada a força que imprimiu a seus argumentos, para uma obesa fofoca. Para algumas pessoas falar da vida dos outros se torna uma arte muito prazerosa, para a vizinha essa prática social havia se tornado uma rotina, que ela repetidamente, ansiosamente, vivia.
A vizinha era uma solteirona. Dizem que quando jovem teve um grande amor, amava seu primo. Mas ele engravidou uma menina pobre, dessas criadas de fazenda grande, e teve que casar. Mudou de cidade e ela teve que conviver com esse amor rasgado, arrancado do peito, desde então. Dizem que quando não temos uma vida própria, encontramos conforto e emoção em novelas mexicanas, com seus dramas, choros e velas, e atrizes com uma quantidade excessiva de maquiagem. A vizinha sabia de tudo, tanto dos capítulos que já passaram quanto dos que viriam, tanto da novela quanto das vidas de todos naquele bairro, naquela pequena cidade interiorana, que todos os dias, às quatro horas em ponto, cheirava a café preto, forte como os braços das lavadeiras que torcem suas roupas.
Perguntou a dona de casa se ela conhecia bem as pessoas com que o marido dela trabalhava, perguntou se ela já tinha ouvido falar de uma tal Marta. Disse que nas rodinhas sociais do bairro não se falava em outra coisa: a Marta era amante de um homem casado. Disse que havia conversado com muitas mulheres ali do bairro sobre o assunto. Disse que não gostaria nem de imaginar o sofrimento de uma mulher que se descobrisse traída, ainda mais com mulherzinha de quinta categoria como a tal de Marta. "Marta”, disse a vizinha nervosamente, “nome de mulher desavergonhada!”.
A humilde dona de casa fez cara de quem realmente não fazia ideia do que a vizinha estava falando, muito menos do que pretendia com tudo aquilo... Que lógica havia em afirmar que o simples fato de uma mulher se chamar Marta já faz dela uma mulher desfrutável? Pergunta que a anfitriã, atenta às batidas cansadas do pêndulo do velho relógio da sala, logo ignorou. “Ele já deve estar chegando.”, pensou.
A mulher, farta de todo aquele falatório sem sentido, deixou a vizinha sozinha e foi por a mesa. Escutava a outra tagarelar incessantemente sobre uma camisa manchada de batom que foi achada na esquina de sua casa, do cheiro de papel velho que emanava de suas mangas compridas, que o tamanho da camisa condizia com a que um homem robusto usaria, alguém como o marido daquela dona de casa, por exemplo.
Enquanto isso, os garfos, ao encostarem nos copos de vidro, faziam um barulho engraçado, que fazia a mulher se lembrar de seus tempos de criança, quando ela sentava na soleira da porta da casa de seus pais, fechava os olhos e ouvia o apanhador de sonhos, apanhando os sonhos de tanta gente que vinham aos montes com o vento.
Lembrou de uma vez que saiu com seu marido e passou na feirinha. Viu um desses apanhadores de sonhos e pediu que ele comprasse pra ela, que ficaria muito feliz se pudesse fazer essa gentileza, mas ele disse que não, que era besteira e que ela não era mais menina nova pra ficar brincando. O incomum é que ela não se lembrou se ficou triste ou não quando ele disse aquilo. Dizem que o tempo cura todas as feridas, mas deixa as cicatrizes.
Ao longe já se ouvia o badalar do sino da Igreja, foi quando a vizinha tagarela e reumática, percebeu que já estava tarde e que o marido da anfitriã, não muito atenta às suas histórias, deveria estar pra chegar. Despediu-se rapidamente e virou a esquina sem olhar pra trás, ainda tinha muitas casas a visitar.
Já iam dar sete horas da noite e nada do marido chegar. “O que poderia ter acontecido? O cartório só fica a quatro quarteirões daqui...” pensou ela, já impaciente com a demora. O assado já esfriava em cima da mesa, o café aos poucos foi perdendo o seu cheiro forte, as roupas já não pareciam tão bem passadas.
Às sete e meia a dona de casa foi esperá-lo no portão, já imaginando que tragédia poderia ter acontecido. Então ouviu ao longe a voz do marido se despedindo de alguém. Enfim ele apareceu na rua, para o alívio de sua esposa, que o recebeu de braços abertos e com um sorriso aliviado no rosto. Perguntou o porquê da demora e de quem se despedia na esquina. Ele, aparentemente cansado respondeu furtivamente que hoje havia muito trabalho e que se despedia de um colega que vinha andando com ele.
O marido entrou apressadamente em casa e foi ao banheiro lavar as mãos para jantar. A mulher ainda ficou alguns minutos do lado de fora, admirando a lua que, na noite em questão, estava lindíssima. Dizem que se você olhar muito atentamente pra lua poderá ver São Jorge acenando pra você.
Dirigiu-se até a porta e, no momento em que estava prestes a fechá-la, sentiu um cheiro diferente. Perfume intenso e muito doce, como o cheiro das damas da noite em certas épocas do ano. Viu uma mulher bonita, de pernas e braços bem torneados, longo cabelo cacheado que caia sobre seu colo e costas. E que lindo vestido ela usava, um tecido bem leve, florido, que parecia cumprimentar a rua quando o vento o levantava.
Lembrou-se então de Marta. “Poderia ser a Marta, não poderia?”. Sentiu que não haveria homem que não se encantasse com ela. Imaginou que seu marido provavelmente ficaria tentado a sentir outro cheiro que não o do café, que às quatro da tarde, invadia as casas e praças, sem pedir licença, e levava com ele os suspiros das moçinhas apaixonadas.
Sentiu, de repente, um desejo de liberdade. Depois do jantar daquela noite e nos dias que se passaram, esse sentimento só crescia dentro dela. Mais uma Amélia que abrira mão de sua vida por seu marido, mais uma Amélia que diria sim para tudo que ele pedisse sem pestanejar e que agora imaginava uma vida fora daqueles portões cor de bronze que, inclusive, harmonizavam muito bem com as margaridas plantadas no pequeno jardim.
Depois de muitas terças-feiras sem parar para conversar, em uma tarde qualquer, de um dia qualquer, naquela determinada cidade, a vizinha novamente convidou-se a entrar, dessa vez, pelo silêncio incômodo que partia da casa. Chamou a mulher, a coitada, a traída, que parecia nem desconfiar de nada, mas ela não respondeu. O portão estava aberto. A curiosidade devorava suas entranhas. Tinha que entrar e ver o que estava acontecendo. Se alguém a repreendesse ela diria que entrou na casa sem ser convidada por preocupação. Dizem que as mentiras têm pernas curtas e cabeludas.
O som do nada continuava a incomodar os ouvidos da vizinha, muito mais acostumada com as algazarras da feira, da igreja e da mercearia, e as vezes com a algazarra provocada por sua própria voz, dentro de sua cabeça. A mesa não estava posta, as roupas estavam jogadas pela casa e o café... não, não havia café. A vizinha ficou com aquela cara muito típica daquele tipo específico de pessoa que acredita que sabe de tudo, mas repentinamente se depara com algo que não entende. “Onde estava aquela mulher afinal?”, pensou.
A mulher se foi, assim como se foram as fofocas a seu respeito depois de alguns meses que desapareceu, assim como se foram as esperanças de seu marido de um dia encontrá-la e tentar entender o que houve, assim como se foi o cheiro de café que habitava a cidade. 
Dizem que a mulher se tornou uma linda borboleta, daquelas que os amantes sentem no estômago sempre que se beijam ardentemente.